Semana passada fez um ano que minha avó morreu.
(Começo essa postagem com um texto que escrevi quando minha avó partiu):
(Entrada da casa de dona Ebe, minha avó)
“Querida vovó,
Hoje eu fui chorar meu luto em águas salgadas.
Estava um dia nublado absurdamente bonito, céu e mar em tons de cinza e um leve verde nas águas.
As ondas intensas.
Me perguntei se você tinha medo do mar como tem a sua filha.
Entrei na água e fui andando até onde não dava mais pé e deixei que as ondas lavassem meu corpo vezes e vezes seguidas até ficar mole, até meus pés pedirem chão.
Eu não pude ir chorar teu corpo.
Eu não pude ir enterrá-la na colina com árvores mais antigas que as do meu jardim.
Mas hoje eu cantei teu nome para o oceano.
Hoje eu contei para ele sobre quão grande é você.
E, de repente, o Sol encontrou uma frestinha por entre as nuvens e eu pude te sentir sorrir.
Estou misturando nosso dna com as águas do mar.
Estamos virando outra coisa.
Meus filhos estão crescendo acalentados por montanhas muito distantes da cadeia montanhosa que te acolheu.
E bebem e se banham em águas de outras fontes, não daquelas que te nutriram, em um lugar onde tudo é intenso e o vento é bravo que nem as mulheres de nossa família.
Lembrei que eu não tenho abelhas para contar a elas que você se foi e meu luto cresceu maior ainda.
Um pouco depois começou a chover.
Você já viu chover no mar, vó? Você já viu a chuva caindo no oceano?
Será que você foi tão de água quanto eu e tua bisneta que nos sentimos tão em casa nesse elemento?
E eu juro, juro, juro que quando começou a chover e gotas gordas pinicavam as águas em que eu me banhava, subiu um cheiro de jasmim tão forte, tão profundo.
Hoje eu não consegui chorar.
Hoje meu luto está com o sabor da raiva.
A raiva por tudo o que não foi, por tudo o que podia ter sido.
Mas agora a paz começou a chover em meu coração porque eu sei que o oceano cheira a jasmim.
E porque você me disse que eu e você sempre falamos dialetos diferentes.
E sempre falaremos.
Mas que isso não importa, que isso nunca importou.
Que agora você já é outra coisa e que está tão leve e feliz como a espuma do mar.
E que eu devo buscar ser assim também.
Você também amava jasmins vó?
Pode deixar que vou continuar rezando por ti em poesias.
Você continuará sendo nosso feixe de luz.”
(06/01/24)
(Minha avó e eu com 16 anos, uma de minhas fotos favoritas nossas)
Me é muito difícil falar sobre esse luto porque sinto que é um luto que já existia antes mesmo dela morrer.
Eu cresci longe de minha avó (975km de distância para ser exata) e tive muito pouco tempo de convivência com ela.
Pensar em minha avó me faz pensar em como a gente é besta em pensar que temos tempo. Que o tempo é algo que usufruiremos da forma como bem quisermos. E que ele trabalhará a nosso favor.
Na minha infância eu não tive voz a respeito de quantas vezes eu iria visitar minha avó em um ano. Mas depois eu tive. E fui levando, fui levando … e o tempo passou.
Mas não é só isso.
Pensar em minha avó me faz pensar nas relações gastas que temos e como vamos desperdiçando tempo (ele de novo) com pequenices e bobagens. E essas miudezas, que não são as que valem, nos tiram tanto!
Não é o meu caso com minha avó.
Mas ao nosso entorno havia 5 filhas e dois filhos (junto deles genros e noras), 12 netos (comigo 13) e diversos agregados, além do avô desquitado.
Algumas relações mais suaves, outras nem tanto (como sempre).
Crescer longe de minha família (não foi apenas de minha avó) também me traz sentimentos ambíguos. De certa forma, consegui cultivar o amor infantil que sempre tive por eles. Mas conforme fui "crescendo” descobri que a melhor forma de manter esse amor era amar a distância, não me envolvendo muito.
Algo muito frio de se confessar, mas eu sou daquelas pessoas que não sabe se envolver se não for completamente.
Ainda não aprendi a passar raspando, sem me ralar por inteira.
Quando dói, dói de corpo e alma e demora tanto pra sarar de novo …
Então essa distância também foi um escudo.
Quis guardar em mim o sonho da criança.
Não sei se fui (se sou) justa.
Pensar em minha avó também me faz lembrar que hoje meus filhos tem avós! (Ainda bem! As duas são uma benção na vida deles).
Isso me leva a alguns lugares doídos, pois tenho que dar muito espaço para avós (algo que nunca tive) e cultivar um tipo de relacionamento que eu nunca conheci: o da mãe com a avó (aqui avó-mãe e avó-sogra no mesmo balaio pois, pelo menos na nossa vida, quando elas vestem a capa de avó elas são isso em primeiro lugar e acima de tudo, então tanto faz mãe de quem que são - e imagino que elas estão certas nisso).
Porém elas tem desbravado alguns lugares em mim cujas paisagens eu mesma ainda não conheço. E que doem. Dói porque quando me vejo na berlinda, tendo que ceder, eu lembro que "porra, eu não tive avó!".
Porque no fundo, no fundo mesmo, meu sentimento é esse.
“Eu não tive vó".
E eu tive duas.
Uma que mal conheci (pois de novo, o problema das relações gastas e doidas) e a primeira, tão amada, tão distante e inacessível. E que ano passado fechou seu ciclo nessa vida.
Sei que temos nossos carmas e lições nessa vida.
Essa é uma das minhas.
Mas ainda é uma ferida aberta.
Hoje eu espero que meus filhos possam cultivar bons relacionamentos com as avós deles.
Que carreguem consigo doces memórias que eu não tenho guardado em meu coração.
Comprometo me esforçar para que as relações ao entorno das histórias deles não desgastem a deles (apesar de ser difícil às vezes).
E espero que, se um dia eu for abençoada com a função de avó, eu possa curtir meus netinhos crescendo de perto, com presença e afeto (e sem sufocar a mãe deles, amém!).
Pensar em minha avó e só trazer sombras minhas não é justo com ela, pois ela foi uma mulher incrível.
Ela mesma não gostava de contar de si ou do passado (na verdade ficava muito incomodada quando eu começava a perguntar).
Sinto que não tenho muita autoridade para falar dela. Mas sei que isso é algo que preciso trabalhar em mim também.
Por isso, deixo alguns "cheirinhos de memória” pois sei que de tudo, era só isso que ela queria que meu coração carregasse:
(Dona Ebe ensinando minha irmã a bordar. Foi ela quem me ensinou também, quando eu tinha 6 anos)
*
Seu sorriso, que fazia parecer que ela sempre tinha pescado no ar algo muito singelo que ninguém mais havia percebido.
Sua alegria, que era a casa cheia dos netos, filhos, agregados e quem mais viesse.
Nunca faltou lugar à sua mesa, nem um abraço afetuoso a quem aparecesse.
Com uma simplicidade sem fim.
O cheiro da casa, que quando eu ia sempre cheirava a doce, pois ela queimava amendoim para fazer pé de moleque que eu sempre amei.
Mas também o cheiro da roupa passada, bem passada, lavada antes com amaciante.
Sua postura ereta quando assistia suas novelas, tão envolvida que estava. Era o único momento em que nos pedia silêncio.
Sua cumplicidade, nos permitindo fazer bagunça, mesmo que depois contasse tudo para nossas mães. Mas isso a gente só ia descobrir muito, muito depois. Então não fazia diferença.
Sua felicidade em receber foto dos netinhos. Que feliz ficava, mesmo com a distância, mesmo com o tempo longe, receber fotos lhe deixava tão feliz! Mais que ligação ou mensagem de áudio.
E suas mãos. Mãos que cozinharam, cozeram, cortaram, acalentaram, afagaram, amaram, seguraram filhos, trocaram fraldas, lavaram e passaram roupas. plantaram e colheram, bordaram, escreveram, seguiram o texto para facilitar a leitura, bateram palmas e carregaram cada um de nós. Carregou até meus filhos um pouquinho.
E só de lembrar disso, já enche meu coração.
Obrigada vó, te amo!
E sinto muitas, muitas saudades, como sempre senti!
Deixo abaixo o texto que escrevi no dia de sua morte:
(Belo Horizonte vista de sua janela)
“Vó,
sinto que eu nem pude te ter direito na vida.
Nem pude vivenciar muito o ser sua neta.
E isso me rasga o coração.
Sinto que perdi algo enorme, algo gigante, algo que eu nem posso explicar direito porque eu mal sei o que é.
E isso me deixa revoltada.
Mas nenhum desses sentimentos cabem agora e tenho certeza de que não é assim que você queria que eu me sentisse.
Chove enquanto eu te escrevo, enquanto busco lá dentro palavras para te dizer o que não sei.
O luto é um silêncio bem profundo.
Quando penso em você, só consigo pensar no quanto você é gigante, é enorme.
No quanto em você coube o mundo inteiro.
Logo você, que era tão pequenininha.
Você que trouxe ao mundo tanta luz, tanta e tantas vidas, que foi tão você até o último momento, não aceitando ser nada menos.
Não acho justo dizer que foi forte, que foi guerreira, porque sei o peso e o custo dessas palavras e sei que a vida da senhora foi muito além desses adjetivos.
Mas você me ensinou a força de ser quem sou, de ser eu mesma.
De não olhar para baixo, não baixar a cabeça (desculpe que às vezes eu sou uma aluna tão terrível).
Você me mostrou o quão importante é saber e lutar por minha própria verdade, pela minha própria vida.
E me ensinou que sempre, sempre cabe um sorriso, uma risada, que a maior gratidão vem de estar junto, de ter pão na mesa e saúde no corpo. O resto a gente dá um jeito.
Obrigada vó!
Só cabem agradecimentos.
Não tem mais palavras.
Eu te amo muito e vou continuar sentindo sua falta, como sempre senti. Sempre, muito.
Obrigada por ser quem foi.
Por ser minha avó, por ter dado luz à minha mãe e as todas minhas tias e tios tão amados, por ser a bisa dos meus filhos.
Você é eterna vó!
Eu te amo!
Dona Ebe, matriarca, mãe de 7, avó de 13, bisavó de 16”
(04/01/24)